DOIS MUNDOS

Por Dirceo Stona

Publicados na edição
Coletânea Palavras 2020


Coletânea Palavras 2020

PREFÁCIO

A obra de Dirceo Stona nos faz caminhar com o tempo às profundezas da imaginação. Provoca-nos a estar na narrativa como passeantes vívidos no mundo de deuses, pecados e punições. A genialidade do escritor ao delinear a alegoria de “Dois Mundos” e brincar com os seus deuses também nos oferece uma apreciação sensível e crítica do momento atual. O SARS Cov II maculou nosso estado psíquico e nosso tempo histórico. Mas, não é somente sobre isso que Stona nos provoca.

A narrativa desenha dois mundos, diversos, porém com elementos convergentes. O transicional mítico apresenta o contexto atual e o imaginário de muitos, especialmente quando supõe as “pragas” e o “castigo”. No primeiro cenário temos um Senhor atuando sob as pessoas que “descumprem” traçados pré-estabelecidos. No segundo temos um vírus voraz que assolou a humanidade e exigiu rotinas sanitárias. Os mascarados, camuflados no medo, besuntados em álcool em gel não são demônios, do mundo dos deuses, são os humanos buscando modos de coabitar com o vírus e sobreviver.

Impressiona como o autor trabalha as questões políticas de modo lúdico e crítico, apoiado na filosofia. Que mundo é esse que somos convidados a dar as costas? Esperamos Zaratustra nos apontar o caminho!? Aquele que foi a montanha para encharcar-se de si mesmo e, então, proferir a palavra. A narrativa, complexa e entusiasmante, nos permite várias camadas de entendimento. Ao trazer Zaratustra, alude a pensar caminhos nesse “pan-tempo” e, sobretudo, lembrar como a humanidade vem tropeçando em questões ético-humanitárias. O humano do mundo está em declínio. Declinam também os comportamentos coletivos “sustentáveis” enquanto os crimes escalam degraus assustadores. Nesse intento, enxergamos o cenário das relações de poder, estabelecidas entre o Senhor, seguidores e seus oponentes. Apresenta as conflitivas que o desespero por “cura” promoveu no Senhor e como a população foi impactada e vampirizada por “Jiangshi”. A avalanche de emoção e medo incrementa as incertezas e a experimentações de fórmulas salvadoras.

Por fim, apesar do futuro assustador que a sátira nos oferece, o trocadilho com a árvore Yggdrasil, que lembra Brasil e na mitologia sugere que existe esperança de “cura” dos males da humanidade e a conexão do universo. Mas para isso há de se olhar coletivamente para o mundo, que é espaço legítimo de vírus e homens. Recomendo a leitura dessa obra densa, inteligente e contundente. Ninguém mais ficará acima das leis.

Katia Bonfanti
Escritora


DOIS MUNDOS

Existem seguidores de Maomé, de Buda, de Jiangshi. Também há os adoradores de Orixás, de Jó e até de Qohélet. O maior número está no grupo dos devotos de Deus, que chamarei de Senhor. É Ele o dirigente de Yggdrasil, um sistema cujos frutos têm o poder de curar qualquer doença e até mesmo de salvar quem está à beira da morte.

O Senhor já havia, em outra circunstância, castigado Adão e Eva. Foram expulsos do Éden, visto que Eva, seduzida pela serpente, provou da árvore proibida o fruto. Nasceu aí o desapontamento do Senhor e, também, o pecado e a desobediência. Ele malogrou na tentativa de se fazer temido. Usou, como retaliação, a água para forçá-los a serem fiéis às doutrinas e aos Seus dogmas. Pediu para Moisés divulgar quais seriam as leis, escritas nas tábuas velhas que tinha, porque, na época, não havia Internet e nem televisão. Chamou Aarão e ordenou:

Aarão, não conte à Mirian e nem ao seu irmão, pois ele já falhou comigo quando Eu pedi que libertasse o povo de Israel. Até hoje brigam por Moisés não ter conduzido as negociações como deveria e, além do mais, a tua irmã vai contar para as amigas. Preste atenção: dentro de quarenta dias vai começar a chover e um grande dilúvio varrerá da terra os males. Para isso, tens que falar com o Noé, um carpinteiro, filho do Lameque, para que construa uma Arca e nela leve um casal de cada espécie.

Aarão, assustado como sempre, conhecedor da maneira rude do seu Senhor, foi e contratou uma equipe de engenheiros, que passavam de reunião em reunião trocando mensagens entre si, até que, em certo momento, para que o projeto encomendado fosse mais perfeito, resolveram conferir os currículos dos que estavam trabalhando. Ao analisarem o perfil de Noé, verificaram que ele não tinha curso superior e, de posse disso, ordenaram ao Chefe do RH que o demitisse. Assim foi feito.

Passaram-se quarenta dias e a Arca não ficou pronta. Mesmo que insistissem com o Senhor para alterar a data final do detalhamento e execução do trabalho, não houve novo prazo. De repente, avistaram ao longe um barco em proporções colossais. Aarão, perplexo, perguntou:

– O que é aquele vulto que passa lá?

Responderam em uníssono:

– É o Noé que construiu aquela Arca, parecida com a do nosso projeto.

Depois de ter castigado Adão e Eva e de não ter obtido, com as missões dadas a Moisés e a Aarão, os resultados esperados, o Senhor arremeteu-se novamente contra a humanidade. Transformou em sangue as águas do Rio Nilo. Cobriu a Terra com rãs. Infestou homens e animais com piolhos. Escureceu as nuvens com gafanhotos, que, na visão autoritária Dele, nada adiantou. As coisas foram cada vez piorando: homens desrespeitosos passaram a profanar estátuas e a praticar adultérios à revelia. Governantes, desorientados, começaram a pregar o uso de drogas sem a aprovação da OMS (Organização Moderadora do Senhor).

***

Em Banquete promovido por um certo filósofo grego, homens beberam até cair, discorrendo sobre o amor. O mesmo filósofo descobriu uns sujeitos em uma caverna e os manteve de costas para que não vissem a luz e não soubessem dos prazeres da vida: a mulher pelada, o jogo do bicho e o carnaval. Como não tinham o que comer, se alimentavam de morcegos.

A fala em Praça Pública, como deve ser a República, foi o pináculo de sua existência. Atraiu para si vários seguidores. Um deles, o mais fiel, depois de dizer que: “só sabia que nada sabia ”, morreu em defesa da vida virtuosa e da moral – suas grandes preocupações.

Um velho de barbas longas e amareladas, que morava nas montanhas em uma caverna e, também, se nutria de morcegos, desceu e proferiu: “se queres o caminho para ti mesmo? Detém-te um pouco mais e me escuta ”. Assim falou Zaratustra.

***

Com todas as desobediências e os sacrilégios perante o Senhor, Ele resolveu confabular agora com uma divindade de nome Jiangshi, que teve origem em corpos que ressuscitaram de pessoas cuja alma não conseguia deixar a matéria. Jiangshi, para se manter, sugava a essência vital (o ki ) dos outros, e sugeriu ao Senhor – para resolver o mal, outra vez gestado pela humanidade – criar uma pandemia. Segundo Jiangshi, será uma doença contagiosa que se alastrará em todas as regiões e não poupará ninguém. Com isso, o Senhor buscará libertar aqueles homens que estavam na caverna, cegos e surdos para o mundo, por viverem de costas para uma verdade luzente. Eles, libertos, junto com o velho das montanhas, sairão propagando a paz e o amor livre, mostrando que não é necessário crer Nele e tampouco seguir as leis. Os eloquentes discursos e seus exasperados perdigotos serão os vetores que contaminarão uns aos outros. Líderes de outras tribos, praticantes do totemismo, brigarão entre si e a animosidade imperará. Depois que poucos ficarem na Terra por terem perdido seus amigos, familiares e colegas, dar-se-ão conta de que outros, de alma purificada, habitarão o mundo, que Adão e Eva não souberam respeitar, ao instituírem o pecado.

Assim sendo, uma grande Assembleia dos Deuses foi convocada para transmitir o que ficou acertado entre o Senhor e Jiangshi. Muitas informações vazaram a partir daí e geraram inúmeras fake news . O medo e a paranoia se instauraram. Diante dos rumores e do clima tenso, o Senhor, ao ser cobrado, precisou se retratar. Arrematou: conforme Jiangshi, todos os não tementes a Ele sucumbirão, não importa o deus que sigam, não importa a cor nem a idade, basta serem humanos. Aos peixes, às aves, às plantas e aos animais, nada acontecerá: eles vivem de acordo com as Leis da Natureza e não cometem adultérios.

***

Passaram-se dois mil anos. Morreram milhares de pessoas. Quando todos pensavam ser tudo aquilo uma pilhéria, uma nova sociedade surgiu, com outros costumes: no Yggdrasil todos se reportam agora a uma só divindade. Os rostos estão iguais ao usarem sobre a boca e o nariz um adorno que vai da cor branca à preta, para que as secreções não se espalhem. Corpos conseguiram se libertar da alma e neles a seiva da vida prospera, sem que ninguém mais precise ficar de costas para a luz. As crianças aprenderam a se comunicar através da imagem produzida em vídeos. Os limites geográficos terminaram. Não existem mais fronteiras para que não se repitam mais as cenas de Aylans, Oscars e Valérias . Por um mundo sem fronteiras, caso contrário, outras tragédias virão.

A pandemia, provocada pelo Jiangshi, no mundo chamado Yggdrasil, deixou o Senhor satisfeito pela seleção e pelos cortes feitos, que otimizaram a imagem e a imaginação. Com isso, pensa Ele, novos estilos de vida, novas rotinas, com a implementação do distanciamento controlado, também evitarão os conchavos e os complôs contra Seus inimigos. Ninguém mais se achará acima das leis. Predominará o compromisso com o bem comum.


Dirceo Stona

Dirceo Stona

Dirceo Stona – Ciências Econômicas na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); em 1991 Filosofia na Faculdade Meridional (IMED) Campus de Porto Alegre em 2019. Participa da Oficina de Produção Psicanalítica e Literária, com Paulo Fernando M. Ferraz.

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