Por Dirceo Stona
Publicado na Antologia da ALMURS 2020
Histórias Verídicas da Minha Terra
A cidade ainda tinha as luzes das ruas acesas, quando o ônibus que veio da Região da Fronteira chegou à Rodoviária. Somente o pessoal da limpeza e o homem de cabelos brancos, atrás do balcão, aparentando uma idade avançada, estavam acordados. O atendente, ainda com cara de sono, piscava os olhos e esquecia-se de abri-los na frente dos clientes que pediam a passagem para o próximo trecho da viagem. Depois, se não havia mais ninguém, continuava a dormir sentado. A maior parte da população entregava-se ao sono em suas casas: por que ele não poderia fazer o mesmo? Notava-se, pelas janelas entreabertas dos quartos, o escuro da noite e o roncar de gordos dorminhocos ressonando naquele amanhecer de 8 de abril de 1978.
No banco, corroído pelo tempo que estava em local que pegava sereno e sol, um personagem popular, aparentemente selvático, um nativo inculto, dormia que chegava a babar. Parecia ter Síndrome de Down. Apresentava um rosto arredondado, boca pequena e língua grossa, além de ser dotado de baixa estatura. Todos conheciam o Elmo. Foi ele o primeiro a se comunicar com o Florêncio, mas não soube informá-lo muito bem sobre a tal Mina de ouro que, nos anos cinquenta, foi explorada pelos belgas. O máximo que o Forasteiro conseguiu foi que o Elmo, com o seu tatalar, indicasse onde morava o sepeense que melhor pudesse ajudá-lo na empreitada. Ele se chamava Rogério Vargas.
Florêncio era um jornalista nascido no Uruguai, próximo de Rambla Armênia, em Montevideo, em uma fazenda da Vila Carmem, no Departamento de Durazno. O uruguaio, em 1976, conheceu o ex-governador do Rio Grande do Sul que, naqueles pagos, era chamado, carinhosamente, por “El Caudilho”, que se encontrava exiliado, após o Golpe Militar liderado pelo alto escalão do Exercito Brasileiro, em maio de 1964. Florêncio já tinha estado no interior, de Nova Hamelin, buscando inspiração para o livro que escreveu sobre os símbolos e a linguagem. Agora, queria estreitar ainda mais as proximidades geográficas entre os gaúchos e os uruguaios e saber sobre os contos interessantes que circulavam entre as fronteiras. Por recomendação do capataz da fazenda de Vila Carmem, foi a São Sepé para conhecer o Rogério, o famoso contador de histórias. Meus leitores, posso assegurá-los, sem medo de errar e sem exagero, que o Rogério foi mesmo o maior contador histórias que já se ouviu falar.
O Forasteiro, como era conhecido desde Nova Hamlein, após ser informado por Elmo acerca do endereço da casa de Rogério, decidiu visitá-lo. Sabia, pelos rumores, que o homem era um verdadeiro arquivo vivo. Diziam que contava os fatos com detalhes quase cinematográficos. Fazia com que se viajasse no tempo e se unisse os retalhos distorcidos para que o cenário de novas histórias se formasse. A partir do que ouvia, o jornalista uruguaio passou a conceber em imaginação o Rogério.
Florêncio saiu a “passito” para conhecer o local e, mais tarde, se apresentar ao Rogério, a mando do velho capataz de Durazno. A tarde ia caindo. O relógio da igreja matriz marcava seis horas, que eram acompanhadas pelas dezoito badaladas do sino de bronze, no alto da torre. Homens de bombacha e alpargatas, aos poucos, iam se achegando na esquina da Praça da Hidráulica que, dada a regularidade dos encontros, passou a ser conhecida como “O Escritório”. A patacoada corria solta sobre política, futebol, aventuras campeiras e outras milongas que aconteciam nos bares e nos clubes sociais – símbolos das mais altas castas representativas do município. Florêncio aproximou-se, acanhadamente, ao grupo e foi logo se apresentando. Falou, com um castelhano moroso, o porquê de ter ido ali, logo participando da roda de chimarrão, em que a cuia passava de mão em mão, com as historias de fundo, que sempre iniciavam com: “Fulano, tu te lembras de tal coisa”. Um do grupo disse: “e tu, Rogério, te lembras quando os belgas vieram a São Sepé para saber das Minas de ouro da Bossoroca?”.
O entusiasmo do Forasteiro se acendeu. Pronto. Eis a história que o uruguaio queria escutar com detalhes. Foi esse o motivo da sua viagem. Fazia parte da pesquisa que vinha realizando para o jornal Diário El Pais, de Montevideo.
Em 1950, alguns aventureiros europeus se instalaram no Distrito do Cerrito do Ouro e deram início à escavação das Minas da Bossoroca. O método adotado foi mal-ajambrado, tanto que provocou o desmoronamento dos poços, e isso fez com que voltassem para o Velho Mundo. Certa ocasião, uns belgas, descendentes dos antigos proprietários, foram a São Sepé para juntar mais informações sobre o que havia acontecido naquela localização, já que portavam um diário contábil, achado em Dendermonde, que apontava para garimpagens prósperas. Segundo as anotações, no exemplar surrado e respingado de barro, seus ancestrais haviam encontrado enormes pepitas de ouro. Isso tudo provocou mais curiosidades às já existentes. Com a chegada do grupo, reuniram as forças vivas da comunidade para que ouvissem e falassem acerca da reativação da Mina, que tornaria a todos ricos. As Minas da Bossoroca – diziam por aí afora – só se comparavam às existentes em Minas Gerais.
***
Foi feita uma “boia” (comida campeira) para os belgas visitantes, no galpão que o Seu Nassif Simões tinha nos fundos da casa. Nesse salão estava o Tio Colosso¹, que quem não conheceu e não conhece a história, era um ser boníssimo, mas desgastado pelo tempo, observado na pele de um retinto idoso e biruta, que andava caminhando pelas ruas, sempre com um capote surrado, vestido como se fosse um Provisório – termo usado para um militar engajado na Revolução de 1930. Tio Colosso desfilava com aqueles trajes dados no quartel para andar a cavalo, o culote² e até com uma espada na cintura. Tio Colosso era usado, pelos mais velhos, para assustar as crianças. Muitos receberam a seguinte ameaça dos pais: “nós vamos chamar o Tio Colosso, se continuares fazendo xixi na cama”.
O Tio Colosso estava naquela “galinhada”, que participou o Juiz, o Padre, o Prefeito e o Presidente da Câmara Municipal de Vereadores. Nenhum deles falava francês, língua oficial dos belgas. O Tio Colosso, acocado em um canto do galpão de chão batido, com um palheiro atravessado na boca, atiçava as chamas no fogão à lenha. O
pessoal estava conversando com os belgas na volta do fogo, onde estavam reunidos. Tio Colosso fazendo ouvido comprido, prestava atenção de uma maneira estranha. Os belgas, ao passarem por Porto Alegre, contrataram um intérprete que foi na comitiva para fazer a tradução dos colóquios, para a linguagem da cultura gaúcha.
As pessoas falavam e o Tio Colosso nem dava bola. O intérprete traduzia; o Tio Colosso, nada. Os belgas se manifestavam em sua língua-mãe e o Tio Colosso, com a mão no queixo, demonstrando interesse, ainda de cócoras, fazia sinal com a cabeça para frente e para trás, como quem estivesse entendendo e concordando com tudo. Falava de novo o tradutor e o Tio Colosso fazia de conta que havia extraviado a compreensão de seu próprio idioma nativo. Os belgas voltavam a falar em francês, e o Tio Colosso parecia dominar o vocabulário intrincado de Luís XVI e se inteirar de toda a prosa.
Um dos caras, que estava no jantar, chegou de mansinho no Tio Colosso e perguntou-lhe assim:
– Mas, Tio Colosso, tu estás entendendo tudo o que os belgas estão falando?
E o Tio Colosso respondeu:
– Paraguaio é comigo mesmo.
Ouviram-se muitas risadas ao fundo do galpão, pelas “tiradas” gauchescas do Tio Colosso, um conhecedor de todo o anedotário do povo da Pulquéria.
¹ Tipo popular que tinha mania de guerreiro. Usava alguns maltrapilhos trajes militares e sempre ostentava um lenço vermelho no pescoço. Tinha o apelido de Touro Preto e, quando os guris da época assim o chamavam, deviam fugir, porque o troco vinha através de pedradas, segundo Valdiocir Bolzan.
² Tipo de calça larga na parte de cima e justa na parte de baixo, próprias para andar a cavalo e com as quais se usam botas de cano alto.
***
O gosto de Rogério em contar histórias foi adquirido com o pai e com as leituras da Mitologia Grega. O que mais lhe causava encanto eram os versos do poeta épico Homero, na Odisseia. Influenciado pelas conquistas de Ulisses, dizia que a primeira filha dele iria se chamar Penelópe e o primeiro filho, Ulisses. Isso não aconteceu. Nem com um e nem com o outro. Quando Rogério queria exaltar o feito de alguém, mesmo que fossem os de políticos de sua admiração, evocava a passagem em que o herói lendário dera o odre de vinho ao Polifemo. Ulisses, de forma astuta, ocultou a real identidade e disse ao ciclope que se chamava Ninguém. O gigante banquetearia Ninguém por último. Para os que não conheciam a trama, Rogério descrevia a parte em que o monstro, após embriagar-se, acabara adormecendo. Então, Ulisses aproveitando a vulnerabilidade do oponente, lhe furou o único olho. Cego, a criatura gritava por socorro. Os outros ciclopes, aturdidos, perguntaram-lhe quem havia lhe infligido tal maldade, e Polifemo redarguia: “Ninguém… Ninguém”. Seus companheiros foram embora certos de que Polifemo estava delirando. No final, quando o herói já estava em alto-mar, o ciclope descobriu que Ninguém era o próprio Ulisses.
As crianças, tementes ao porte estranho do Tio Colosso, por associá-lo ao ciclope, pediam ao Rogério que chamasse o Ulisses para defendê-los da figura mais assustadora da cidade para a gurizada. Florêncio anotava tudo. Achava aquelas histórias apaixonantes. Imaginava o sucesso que fariam nas páginas do matutino uruguaio. Desejava conhecer tudo. Queria saber, antes de ir embora, o lado político do homem que todas as tardes reunia dezenas de amigos na esquina da praça para que trocassem contos e bravatas, próprias das cidades interioranas. Precisava entender como tinha sido o apoio logístico que Rogério tinha dado às lutas sociais. Foi noticiado em toda a imprensa do país: produtores rurais, em julho de 2003, bloquearam uma ponte no município e impediram a marcha de 800 sem-terra. Rogério, que não bebia água na orelha de homem algum, abriu as porteiras para os manifestantes descansarem da caminhada e montarem o acampamento. Como tantas outras, essa aventura ficará para a próxima rodada de chimarrão ali mesmo, no “Escritório”.
Agora, a noite chegava rapidamente. As luzes das ruas começavam a se acender. O Forasteiro, cansado da viagem, precisava localizar o hotel em que se hospedaria e, depois, ainda transcrever tudo o que escutara. Saiu da roda dos novos amigos. Todos simpatizaram muito com Florêncio. O estilo carismático e bonachão, próprio do povo da fronteira, ajudou bastante. Prometeu retornar no dia seguinte, caso nada viesse a lhe acontecer. Ele partiu. Poucos notaram que, ao longe, algo estranho acontecera: a aparição do vulto de uma mulher alta, bonita e vestida de branco. Não tinha rosto de santa e nem de anjo. Para os que a contemplaram – os mediúnicos ou videntes –, transpirava maldade. Quem viu, contava que ela tinha perguntado as horas para o Forasteiro. Quem não testemunhou, tachava o uruguaio de “desmiolado”. Por ser um galanteador, tinha devolvido a indagação à mulher no seu típico portunhol: “¿Sabes dónde está el hotel de Delui?”. Os incrédulos dizem que ela respondeu prontamente: “Sim, eu te acompanho”. Os outros se omitiram a opinar.
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O castelhano foi embora. Não compareceu ao “Escritório” no dia seguinte, como pretendia. Todos ficaram se perguntando: “quem seria aquela bela mulher que interpelou o Forasteiro? O quarto 371, no único hotel da cidade, foi o palco do quê? Tudo teria acontecido a partir daquele encontro fantasmagórico?”. O mistério tomava conta do imaginário da população. Cada um criava as próprias versões do ocorrera ali. Os poucos elementos precisavam remontar os episódios que se sucederam durante a noite: a garrafa de “Veuve Cliquot”, duas taças vazias, deitadas sobre a toalha de linho branco, os lençóis amarfanhados no chão e a identidade de alguém do sexo feminino que nunca ninguém conhecera e que não havia se registrado na recepção do hotel.
Rogério permaneceu o tempo todo calado e pensativo, assimilando os rumores que acirravam o suspense. Ao ser indagado sobre o místico acontecimento, respondeu:
– Deve ser aquela mesma que uma noite me apontou insistentemente para o campo que terminei comprando, seguindo as orientações dos espíritos.
Essa é outra história, leitor. Ficará para a próxima narrativa das “Histórias Verídicas da Minha Terra”.
***
No hospital, Rogério recebeu as orientações para os cuidados do pós-operatório. Entre uma explanação e outra, contava onde morava e quem conhecia em outras cidades que tinha passado em campanha política. Falava na família, nos amigos e em como tinha ido parar naquele nosocômio, não sem antes criticar os governantes pelo desleixo para com a saúde e para com a população mais pobre do país, mas que mantinha a esperança que, um dia, todas as instituições, principalmente as públicas, seriam como a que ele estava. Foi quando o fisioterapeuta disse:
– Sim. Seu Rogério, apesar de sua cirurgia ter ocorrido muito bem e do senhor estar em um hospital excelente, a função respiratória dos pacientes, após o procedimento, fica um pouco prejudicada. Para isso, será muito importante que o senhor colabore e mantenha a prática da atividade física. Caminhada é um ótimo exercício e deverá ser praticada diariamente. Coloque seus tênis e caminhe na praça.
Rogério ouviu atentamente as prescrições. Quando lhe foi dito para calçar os tênis, não se conteve e interrompeu a orientação. Com seu conversar característico e arrastado, usado nos programas de rádio que mantinha em sua terra natal – difícil de ser reproduzido na forma escrita –, ele, conservando a originalidade peculiar de um antiamericano, deixou bem clara a sua posição hostil em relação à política e à cultura dos Estados Unidos:
– Meu amigo, eu, na minha vida, nunca usei um tênis. Isso, companheiro… Isso é coisa dos americanos. Dos gringos querendo nos prejudicar. Prejudicar nossa economia e nossas fábricas de calçados. Só uso alpargatas. Alpargatas e botas. Isso, sim, é coisa nossa. Nem tenho tênis. Vai ser difícil me verem com esses calçados americanizados nas ruas de São Sepé.
O fisioterapeuta foi até ele. Colocou-o sentado na cadeira de rodas, que estava parada na porta entreaberta do terceiro andar. Outro atendente o buscou para a radiografia final. Despedimo-nos. Senti sua mão na minha. Mais nada. Minutos depois, antes de me sentar à mesa para almoçar, recebi o telefonema da esposa dele: “O Rogério morreu”.
Rogério faleceu no dia 12 de junho de 2017.
Nota do autor: alguns trechos desse conto foram orginalmente contados nos programas das Rádios Cotrisel e Pulquéria FM, no programa “São Sepé, sua história e sua gente” de 20 de setembro de 2009 a 14 de junho de 2017. Ele esta publicado na Antologia da ALMURS 2020, Histórias Verídicas da Minha Terra